Teologia da Proclamação
Há três disciplinas teológicas que estão direta e explicitamente relacionadas ao culto público: a Liturgia, a Arte Sacra, especialmente a Hinologia, e a Homilética. Trataremos, especificamente, desta última: a Homilética, como um capítulo fundamental da Teologia Pastoral.
No texto de Lucas 24.15 — cujo contexto é o do encontro de Jesus ressuscitado com dois de seus discípulos no caminho de Jerusalém a Emaús —, o verbo grego homileo é empregado para descrever o diálogo em tom familiar e afetivo dos dois discípulos que trocavam idéia entre si a respeito dos últimos acontecimentos relativos à condenação e à morte de Jesus. Homileo — da mesma raiz das palavras Homilia e Homilética— significa, em princípio, “estar em companhia de”, e, por implicação, conversar, comungar. Em português, o verbo conversar é resultado da composição com + versar, o que pressupõe a interação mediada pela palavra entre duas ou mais pessoas.
O mesmo versículo diz ainda que os discípulos “discutiam”, que em grego (suzeteo) significa “investigar junto com”, isto é, controverter, disputar, inquirir, questionar (com), arrazoar (junto). Os acontecimentos relacionados à fé e à vida e morte de Jesus eram objeto não somente de diálogo informativo, mas de exercício especulativo. Os acontecimentos não devem ser objetos de mera informação e assimilação, mas devem ser problematizados com vistas à sua superação.
Outro verbo importante nesse verso é o que descreve a atitude de Jesus: enquanto os discípulos faziam suas homilias e levantavam seus questionamentos críticos, “o próprio Jesus se aproximou”. O verbo eggizo empregado aqui enfatiza o ato de “chegar perto”. estar “ao alcance da mão”.
Por fim, o mesmo verso afirma que Jesus “ia com eles”.
“Aconteceu que, enquanto conversavam [homileo] e discutiam [suzeteo],
o próprio Jesus se aproximou [eggizo] e ia com eles [sumporeuomai].”
(Lc 24.15)
O verbo sumporeuomai, que pode ser traduzido por “caminhar junto”, significa também “assumir uma estratégia ou curso de ação com vistas a resolver uma situação difícil”. A narrativa parece sugerir que, quando a Igreja dialoga e reflete a respeito do Evangelho, o próprio Cristo se aproxima para fazer parte desse encontro dialógico: “Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mt 18.20).
É isso que pretendemos promover neste Componente Curricular: um diálogo afetivo a respeito da comunicação do Evangelho (Homilética); a problematização dialógica a respeito das dificuldades no processo interpretativo (exegético e hermenêutico); o que pressupõe uma aproximação da nossa vida com o seu autor, o Verbo encarnado, num caminhar comum em busca da mesma experiência de ressurreição (Teologia da Proclamação).
Pregação, Homilia, Sermão, Prédica, Parênese…
Qual a diferença entre “pregação” e “sermão”?
Devemos ter claro que a “pregação” (do lat. predicatio e do gr. kerygma), em sentido lato é muito mais ampla que aquela peça oratória pronunciada no contexto celebrativo do culto. A “pregação” é tudo o que a igreja vive na prática como testemunha do Evangelho. A proclamação do Evangelho é a grande tarefa missionária da Igreja. Entendida em sentido genérico, a proclamação abarcaria, na compreensão de Nelson Kirst,
a evangelização, a fala missionária, o catecumenato em grupos na comunidade […], os ofícios casuais […], a poimênica, o ensino religioso nas escolas, artigos e comentários na imprensa escrita, programas cristãos no rádio e na TV.[1]
Portanto, o “sermão” é apenas uma das diferentes formas pelas quais a Igreja prega o Evangelho, ao lado do testemunho pessoal, da solidariedade comunitária, dos atos de piedade e das obras de misericórdia. A pregação acontece por meio de gestos e palavras, de literatura e cânticos, da arte e dos símbolos, etc.
Mais especificamente falando, a homilética é entendida como a disciplina que se ocupa da ciência e da arte da pregação de sermões religiosos — ciência, porque estuda criteriosamente os processos do discurso religioso e arte porque aplica-se ao estudo das suas técnicas. A palavra tem origem no termo grego homiletikos que, por sua vez deriva de homilos que significa “multidão”, “assembléia do povo”.[2]Pelo que se sabe, os primeiros cristãos empregavam o termo para designar a “assembléia do culto”. O verbo grego, homileo, que se traduz por “conversar”, passou a ser empregado para indicar os discursos em tom familiar que eram feitos nessas reuniões ou assembléias. Do verbo homileoderiva-se o substantivo homilia, que passou a designar as exposições instrutivas (exortativas[3]) que se fazia das escrituras no contexto litúrgico das primeiras comunidades cristãs. A homilia se constituiria, assim, em uma das formas da pregação cristã.
Embora o produto homilético receba, com freqüência, diferentes designações, tais como pregação, prédica, parênese, homilia e sermão, em sentido restrito, tais expressões referem-se àquela peça oratória, discursiva que se dá no contexto celebrativo da comunidade de fé. O caráter específico da homilética se dá em virtude de sua vinculação litúrgica.[4] É esse o diferencial que distingue o “sermão” de outros discursos: o contexto litúrgico.
Não obstante o conceito etimológico reporte-se ao grego dos primeiros séculos da era cristã, a práxis homilética em si, considerada como a pregação de mensagens religiosas no contexto da celebração litúrgica, é anterior ao Novo Testamento.
Pode-se estabelecer o seguinte roteiro histórico da práxis homilética: 1) os antecedentes da homilética cristã no período do Primeiro Testamento (Bíblia Hebraica)[5]; 2) a homilética no período do cristianismo primitivo; 3) durante os quatro primeiros séculos da era cristã; 4) durante a Idade Média; 5) no período da Reforma Protestante; 6) a partir da Reforma Protestante; 7) durante o período dos movimentos evangelísticos e missionários; 8) e a pregação recente e contemporânea.
Luiz Carlos Ramos
[1] KIRST, Nelson. Rudimentos de homilética. 3 ed. São Leopoldo: Iepg; Sinodal, 1996. p. 17-18.
[2] BURT, G. Manual de homilética. Trad. De Luiz de Lacerda. 3 ed. São Paulo: Imprensa Metodista, 1954. p. 7.
[3] Cf. descrição da celebração eucarística feita por Justino Mártir, na primeira metade do séc. II, in GOMES, C. Folch. Antologia dos Santos Padres: páginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos. São Paulo: Edições Paulinas, 1979, p. 65-67.
[4] Id., ibid, p. 17-18.
[5] A expressão “Primeiro Testamento” ou “Bíblia Hebraica” substituirá, sempre que possível, a expressão “Antigo Testamento”, bem como a expressão “veterotestamentário”, por se entender que estas últimas carregam uma conotação pejorativa em relação aos escritos do cânon judaico. O autor encontrou a mesma postura em HOLBERT, John C. Preaching Old Testament: proclamation & narrative in the Hebrew Bible. Nashville: Abingdon Press, 1991. 128 p. Cf. nota 1 da introdução. Esta nomenclatura vem sendo observada amiúde pelos mais destacados biblistas contemporâneos.
Que saudade dos seus textos tão edificantes e didáticos. Um abraço saudoso.
Ricardo da Soraia agora da chegada Catarina. UMESP 2003/2006
Saudades da nossa convivência. Parabéns pela Catarina!