Paz, paz! … mas nada de paz!
Mateus 10.40-42 (Versão de LCR)
Quem acolher a vocês estará recebendo a mim mesmo;
e quem me recebe está acolhendo aquele que me enviou.Quem recebe um profeta, não obstante seja ele um profeta,
acabará por receber o mesmo legado que cabe a um profeta;
e quem receber uma pessoa justa, em nome do que é justo,
receberá o legado que cabe a uma pessoa justa.E quem quer que seja que der ainda que seja um copo de água fresca
ao menor dos meus seguidores,
eu lhes garanto, não deixará de receber sua paga.
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Angela Merkel, atual chanceler alemã, a pessoa mais poderosa do mundo, é filha de pastor. Eu não tinha certeza de que tipo de “profeta” esse pastor seria, se mais ao estilo Hananias ou mais para Jeremias. Então, lendo a biografia da chanceler, me deparei com um artigo que seu pai, o Reverendo Horst Kasner, escrevera em 1992, pouco depois da reunificação da Alemanha (Wiedervereinigung), publicado no jornal da igreja luterana de Berlim-Brandemburgo:
“[…] Livres da ditadura de um partido de Estado, havia a esperança de um início de democracia e agora entramos num Estado de partidos, no qual, de acordo com o postulado da Constituição ‘todo poder do estado emana do povo’, porém, não volta mais para o povo. Observamos agora como os partidos fazem do Estado a sua presa e o Estado se tornou uma loja de auto-atendimento para políticos.”
O artigo segue denunciando como se assemelham em suas incongruências a antiga Alemanha Oriental e a Ocidental.
Em 1994, em um sermão na igreja de Zechlin, ele declarou:
“Para a futura paz mundial não precisamos de bombas, mas de pão. […] Por que os políticos responsáveis não reconhecem isto?”
E conclui seu sermão assim:
“Para as decisões políticas tomadas hoje, há necessidade de uma grande inteligência. E os políticos não estão preparados para isto. O seu horizonte intelectual é limitado, com está cada vez mais evidente. Eles são mais fazedores do que pensadores. E apreciam especialmente o poder: como chego ao poder? Como me mantenho no poder? Praticamente não se pode esperar de um homem como o Sr. Rühe, […] que tenha uma visão das exigências políticas no horizonte mundial.”
Volker Rühe, a quem ele faz referência, diga-se de passagem, era na época o Ministro da Defesa da República Federal Alemã, no gabinete de Helmut Kohl; e, nessa mesma ocasião, sua filha Angela Merkel era membro do mesmo gabinete de Kohl, então chanceler e antecessor de Angela — a ordem na sucessão foi: Kohl (1982-1998), Schröder (1998-2005) e Merkel (2005-atualidade).
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Eu sempre havia lido o texto do Evangelho de Mateus 10.40-42 positivamente, até que o analisei à luz do contexto (da Matrix, como preferiria Crossan) no qual está inserido, que trata das perseguições e da rejeição que os seguidores de Jesus haveriam de sofrer em suas ações missionárias.
Em geral, os verdadeiros profetas não são bem-vindos. Os profetas não têm honra na sua terra, Jerusalém costuma matá-los, apedrejá-los, persegui-los, bani-los…
Foi o que aconteceu com Jeremias que, carregando ao pescoço uma canga de bois, se apresentou ao rei Zedequias, em Jerusalém (cerca de 600 anos a.C.), trazendo “más notícias”. Dizia que, por causa da injustiça e da iniquidade que contaminava a liderança da nação, o povo permaneceria debaixo do jugo opressivo de Babilônia (cap.s 27 e 28).
Em contrapartida, os falsos profetas costumam ser muito bem-vindos. Na mesma época havia um certo Hananias, cuja pregação era exatamente o oposto da de Jeremias. Esse anunciava paz e prosperidade quando não havia nem paz, nem prosperidade, nem harmonia, nem bem-estar (vd. tb. Jr 6.14 e 8.11), o que legitimava o status quo calcado na corrupção, no pecado e na iniquidade, muito favorável à classe dominante.
É fácil entender porque o rei bajulava Hananias e desprezava Jeremias.
Jesus sabia o que o esperava e o que esperava pelos que o haveriam de suceder.
As versões mais convencionais em língua portuguesa do texto de Mateus falam de um certo “galardão” que estaria garantido ao profeta e ao homem justo, bem como àqueles que viessem a acolhê-los.
A opção por traduzir o grego misthós por “galardão” nos induz à improvável interpretação em sentido “positivo” do termo. Isto é, pensamos que ser profeta e justo, bem como ser hospitaleiro para com os profetas e os justos, traz vantagens e garante premiações, recompensas e heranças.
Mas misthós se refere ao pagamento em troca de um serviço ou ação, tanto no sentido positivo como negativo. Algo como ação-e-reacão, causa-e-efeito. Ou seja, se pensarmos que “profeta” era um tipo de fora da lei, de criminoso, de revolucionário, o sentido do texto assume um tom de ameaça: “Quem for assim, ou mesmo receber um sujeito desses, ainda que seja para dar um copo de água, vai receber o troco.”
Para serem aceitos e escapar desse tipo terrível de “galardão”, que estaria reservado aos verdadeiros profetas, muitos optaram pelo modelo de Hananias. E estão por aí, às pencas, sendo bajulados e anunciando paz, quando não há paz; prosperidade, quando campeia a miséria; saúde e cura, quando o povo padece e adoece à míngua; salvação, quando o povo vagueia perdido e desamparado como ovelhas que não têm pastor.
Não é que os verdadeiros profetas só sejam portadores de más notícias e desgraças. É que, coerentes com o mandato que receberam de Deus, sabem que prosperidade, harmonia, bem-estar e paz de verdade só há quando o direito é respeitado e a justiça é praticada.
E é essa paz com justiça que os verdadeiros profetas anunciam. E pagam caro por isso.
Reverendo Luiz Carlos Ramos †
Pregado pela primeira vez na Igreja Metodista em Pirassununga:
Quarto Domingo da Peregrinação após Pentecostes | Ano A, 2017
Pregado novamente, em vídeo, para o Projeto Reunidade
da Igreja Presbiteriana Unida:
Terceiro Domingo da Peregrinação após Pentecostes | Ano A, 2020