Cinzas
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Eu te conhecia só de ouvir,
mas agora os meus olhos te veem.
Por isso, me abomino e me arrependo
no pó e na cinza.
(Jó 42.5-6 – NAA)
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Dizem que “humano” vem de “húmus”, a matéria orgânica depositada no solo, resultante da decomposição de animais e plantas mortas, e de seus subprodutos ou produzida por minhocas.
De modo que não parece ser motivo de muito orgulho dizer-se humano.
Talvez por essa razão, inconscientemente, façamos de tudo para negarmos nossa humilde origem essencial.
E fazemos isso, isto é, tratamos de nos desumanizar, de várias maneiras e variadas formas.
O teatrólogo Eugène Ionesco, que se consagrou pelo Teatro do Absurdo, representou esse processe de desumanização, sugerindo de maneira dramática que o “homem” se havia rinocerontizado.
Isso porque, ao longo do processe civilizatório, algumas das “qualidades” do rinoceronte acabaram por substituir várias das “ fragilidades” humanas:
Em particular a miopia, o engrossamento da pele e, acima de tudo, a agressividade.
O ser humano perdeu a capacidade de enxergar longe, e passou ver mal mesmo o que está perto, ou, ao menos, não faz questão de ver bem. Por isso, passou a interpretar qualquer movimento diferente dos habituais como suspeito e cada vulto incomum como ameaça.
Desde então, passa os dias nervoso e as noites assustado.
Querendo proteger-se de eventuais agressões, foi se revestindo de uma pele cada vez mais grossa, e cobriu-se com uma carapaça quase intransponível. Protegeu-se das agressões, contudo também tornou-se insensível e incapaz de dar ou mesmo receber carinho.
Desde então virou um “casca grossa”.
E, pior, convencido de que a melhor defesa é o ataque, para pretensamente se proteger, tornou-se agressivo a ponto de atacar truculentamente qualquer um que cruze seu caminho, inclusive os da sua própria espécie.
Desde então, passou a ser predador de si mesmo e a maior ameaça à sobrevivência do seu semelhante e causa eminente da extinção da sua própria civilização.
…
Daí a importância das Quartas-feiras de Cinzas e seu apelo à conversão, seu convite a que retornemos às nossas origens humildes, humanas, a que recordemos que somos húmus, terra, pó e cinza.
Afinal, não fomos criados segundo os rinocerontes, mas –como contam os textos sagrados– Deus, em seu infinito amor, imprimiu no barro e no pó da terra a sua própria imagem e semelhança, para que fôssemos divinamente humanos.
Por essa razão, quando nos reencontramos com Deus, e nos arrependemos, isto é, retornamos ao pó e à cinza, voltamos a ser o que deveríamos ser: humildes humanos… divinamente humanos.
Rev. Luiz Carlos Ramos †
Por uma igreja de mentes abertas, corações abertos e braços abertos
Para a Quarta-Feira de Cinzas
| Ano B, 2018