A grandeza dos pequenos
(Para as crianças de todas as idades do Sombra & Água Fresca)
Marcos 10.13-17: E traziam as criancinhas a Jesus para que as acarinhasse, mas os discípulos as enxotavam. Quando viu isso, Jesus ficou furioso e disse: — Deixem que as criancinhas venham a mim e não as impeçam, pois destas e de outras como elas é o Reino de Deus. Eu garanto a vocês: quem não receber o Reino de Deus como uma criancinha não entrará nele, não mesmo! E Jesus abraçava as criancinhas e as abençoava, impondo as mãos sobre elas. (Trad. nossa).
A criança no meio
Segundo os Evangelhos, somente em duas ocasiões Jesus ficou furioso: (1) uma vez quando expulsou os comerciantes do templo porque haviam transformado o que deveria ser lugar de oração para todos os povos em centro comercial para a exploração dos mais pequeninos da sociedade. E (2), quando viu os discípulos enxotando as crianças para longe dele.
A razão da indignação de Jesus pode ser mais bem entendida se voltarmos ao capítulo 9 do mesmo Evangelho (vv. 32-37):
Os discípulos não entendiam o que Jesus dizia […]. Jesus e os discípulos chegaram à cidade de Cafarnaum. Quando já estavam em casa, Jesus perguntou aos doze discípulos: — O que é que vocês estavam discutindo no caminho? Mas eles ficaram calados porque no caminho tinham discutido sobre qual deles era o mais importante (o maior). Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse: — Se alguém quer ser o primeiro, deve ficar em último lugar e servir a todos. Aí tomando uma criancinha [paidíon = criança até 7 anos, diminutivo de pais = criança de 7 a 14 anos, vd. Jesus no Templo], a colocou no meio deles. E, abraçando-a, disse aos discípulos: Quem receber uma criancinha como esta, em meu nome, está recebendo a mim mesmo. E quem me receber não recebe somente a mim, mas recebe também aquele que me enviou. (Trad. nossa)
Os discípulos não entendiam Jesus e seus anti-heróis. Não era para menos, afinal, para Jesus, tudo é às avessas. Os mais felizes (bem-aventurados) são os pobres, os que choram, os que têm fome, os que são perseguidos… Os mais desprezados pela sociedade são considerados por Jesus como sendo os mais importantes; os maiores pecadores são os mais amados… Os últimos são os primeiros e os menores são os maiores…
Ora, dentre os excluídos, na sociedade do tempo de Jesus, os mais excluídos eram as criancinhas. Por isso é tão significativo o gesto de Jesus colocar a criança “no meio”. Jesus a tira da marginalidade e a coloca no centro da comunidade. Porque esse deve ser o lugar dela!
Há tanto tempo Jesus vinha tentando mostrar a lógica invertida do Reino de Deus, mas os discípulos tinham muita dificuldade para compreender seus ensinamentos. Só que tudo tem limite. Quando Jesus vê os discípulos excluindo as crianças, depois de tudo que havia dito e feito, sentiu como se ele mesmo estivesse sendo enxotado. Por isso tratou de convencer seus seguidores de que o tratamento dado às criancinhas é, de fato, o tratamento dado ao próprio Jesus.
A criança no colo
No capítulo 10, Jesus reafirma o mesmo princípio anunciado no capítulo 9: Rejeitar as crianças é rejeitar o próprio Cristo, e receber os mais pequeninos é receber a Cristo e aquEle que o Enviou.
Podemos entender melhor o impacto causado entre os contemporâneos de Jesus, o ter ele tomado as criancinhas no colo. Sabe-se que, culturalmente, essa era tarefa exclusiva das mulheres. Cabia a elas carregar as crianças e amamentá-las. Quando Jesus reproduz o gesto dessas mulheres, ele se identifica com elas, e isso causa muito estranhamento entre seus observadores.
São as mulheres que carregam os seus queridos nos braços! E nisso está um grande diferencial do gênero feminino. Saudáveis ou enfermos, recém-nascidos ou à beira da morte, as mulheres embalam seus queridos.
Sintomaticamente, não eram homens os que estavam aos pés da cruz, ou junto ao sepulcro na manhã da ressurreição. Lá estavam presentes justamente as mulheres, dispostas mais uma vez a tomar nos braços aquele a quem amavam, mesmo na hora da morte, e, mais ainda, quando este salta para dentro da vida.
Quem abraça as criancinhas, segura Deus no colo!
A criança no reino
Então Jesus arremata: “Eu garanto a vocês: quem não receber o Reino de Deus como uma criancinha não entrará nele, não mesmo!” A ênfase não é invenção minha, está lá, no original: “Não e não!”
Muitos continuam sem entender os ensinamentos de Jesus até nossos dias. Por exemplo: ainda há quem, subvertendo os ensinamentos de Jesus, queira proibir a recepção das crianças no corpo de Cristo, pelo sacramento do batismo. Para esses, se uma criança não se tornar um adulto, não poderá entrar no reino de Deus. Heresia pura!
Jesus é incisivo: Somos nós que temos que nos tornar como elas para sermos recebidos no Reino. Elas são o modelo para nosso ingresso no Reino. Não é porque elas sejam humildes, perfeitas ou santas. É porque elas, sendo pequenas e frágeis, não têm como retribuir, não têm o que oferecer em troca. Elas, sim, dependem exclusivamente da Graça de Deus: “Porque pela graça sois salvos” (Ef 2.8). Elas são salvas não por serem capazes, mas justamente porque não são (cf. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, p. 469, vd. Tb p 465-475.).
A pergunta não é se a criança pode, mas se Deus pode! E ele não somente pode como quer receber os mais pequeninos, especialmente as criancinhas.
Conclusão
O Missionário Gordon Greathouse, do Projeto Sombra & Água Fresca da Igreja Metodista, em um dos seus textos, cita um episódio da vida de Dwight L. Moody, que foi chamado de “o maior evangelista do séc. xix”:
Ao voltar de uma campanha evangelística, sua esposa teria perguntado: “E, então, como foi? Quantas pessoas se converteram hoje?” E ele teria respondido: “Duas pessoas e meia.” A esposa: “Ah, que bom, e quem era a criança?” “Não”, respondeu ele, “foram duas crianças e um adulto, mas esse já perdeu metade de sua vida.”
Há perspicácia e sabedoria nessa resposta. Uma criança recém-nascida, uma vez recebida no corpo de Cristo, terá o privilégio de viver toda a sua vida na presença de Deus e na comunhão da família da fé.
Há quem diga que as Igrejas na Europa, e em outros lugares do mundo, e as Igrejas Históricas em geral, estão morrendo por causa da secularização. Mas desconfio que o motivo é bem outro. E fico feliz de ver que há mais gente, como o povo do Projeto Sombra & Água Fresca, que pensa como eu: As igrejas que estão decrescendo não devem isso à secularização. Muito ao contrário, essas igrejas têm um discurso e uma prática muito mais afinada com os princípios do Reino de Deus do que muitas das igrejas modernas que estão apinhadas de gente, mas cada vez mais longe do Evangelho. O principal motivo, creio, é que essas igrejas estão morrendo porque são adultocêntricas. Nessas igrejas as crianças não têm lugar. Seus líderes e seus membros “maiores” não suportam nem choro nem riso de crianças; não admitem que engatinhem por debaixo dos bancos, nem que corram pelos corredores (por que haveria corredor, se não se pode correr por eles?); elas não podem riscar os bancos nem as paredes; não podem fazer barulho nem perguntar “por quê? Por quê?”.
O resultado é um só: Essas igrejas ficam bem solenes e bem silenciosas, bem limpas e bem comportadas e, principalmente, bem mortas.
Uma igreja viva, ao contrário, é aquela na qual se ouve o burburinho irrequieto das crianças, que é a mais sagrada de todas as sonoplastias litúrgicas. É essa a igreja que tem futuro! Uma igreja na qual as crianças são incluídas na liturgia do culto e na proclamação da Palavra; e são recebidas no templo com afeto e afagos; e são abençoadas e abraçadas pela comunidade com carinho divino e amor de mãe.
Que Deus nos livre de sermos igreja morta. Que viva a Igreja! Viva às crianças! Viva o Reino de Deus entre nós!
Luiz Carlos Ramos
(Pregado pela primeira vez na
Catedral Metodista de Piracicaba, em 11.11.2012)