Comer para crer
(Cf. Lucas 24.28-48)
“Fica conosco, Senhor, porque é tarde e o dia declina”. Os dois peregrinos não faziam ideia do quanto esse gesto de hospitalidade haveria de mudar suas vidas (e de como mudaria a história da humanidade). Ao convidarem um estranho para se sentar com eles à mesa, sem o saber, estavam hospedando o próprio Deus.
Na maioria das vezes não nos damos conta de que estamos na companhia de Deus. Isso ocorre principalmente em duas situações extremas: de profunda tristeza ou de extrema euforia. É isso que lemos no capítulo 24 de Lucas, no relato dos dois encontros do Cristo ressuscitado, primeiro com os peregrinos da estrada de Emaús e, depois, com os demais apóstolos, reunidos no Cenáculo, em Jerusalém.
O primeiro caso se dá ao ar livre, na estrada. Cleopas e sua esposa (provavelmente), voltavam de Jerusalém decepcionados, frustrados, amedrontados com o que havia acontecido com aquele em quem haviam depositado todas as suas esperanças: seu Senhor e Mestre havia sido preso, torturado, julgado injustamente, condenado à pena de morte e executado sumaria e crudelissimamente na cruz. A tristeza, o medo e o pavor que assaltavam a alma desses peregrinos eram tamanhos que seus olhos se tornaram incapazes de ver Deus presente na história.
O segundo episódio se dá dentro de casa, no Cenáculo. Os apóstolos reunidos, igualmente entristecidos e amedrontados, recebem uma visita inesperada. Seria um fantasma? Mas tem corpo e ossos… podemos tocá-lo… e… essas cicatrizes, essas chagas…? Jesus, então, intervém: “— Por que há tantas dúvidas na cabeça de vocês?” O curioso é que “eles ainda não acreditavam, pois estavam muito alegres e admirados” (v. 41). A euforia histérica é outro elemento perturbador da visão lúcida.
Mas o mais surpreendente é a solução encontrada por Jesus para curar tanto a tristeza profunda como a euforia histérica. Conquanto tenha, no primeiro caso, arrazoado com eles a partir das Escrituras Sagradas e, no segundo, dando-lhes provas empíricas incontestáveis da sua ressurreição, nada disso parecia surtir efeito. Então o Cristo ressurreto suspende a discussão teológica e a sessão de exame de corpo de delito e muda o rumo da conversa: “— Vocês têm aqui alguma coisa para comer?” (no mesmo v. 41).
Aí, sim, é que o milagre acontece. Primeiro: “Sentou-se à mesa com eles, pegou o pão e deu graças a Deus. Depois partiu o pão e deu a eles. Aí os olhos deles foram abertos, e eles reconheceram Jesus” (vs. 30-31). E, depois: “Eles lhe deram um pedaço de peixe assado, que ele pegou e comeu diante deles. […]. Então Jesus abriu a mente deles para que entendessem as Escrituras Sagradas (vs. 42-43, 45).
Curioso ainda é que, depois de tentar esclarecer as mentes dos discípulos no caminho, à mesa, Cristo acaba por abrir-lhes os “olhos”; e, no Cenáculo, depois de tentar abrir-lhes os olhos para que vissem que era Ele que estava ali, vivo, entre eles, comendo peixe assado, Jesus acaba por abrir-lhes a “mente”. A refeição comunal, a partilha à mesa, confere a serenidade necessária para o encontro divino-humano.
Jesus é a Palavra que se faz carne, o Pão que desceu do Céu. Que, também hoje, ao comermos dessa Palavra-Pão, sejamos alimentados para a vida eterna, e os nossos olhos e mentes se abram para ver Deus entre nós, cheio de graça e de verdade, ainda que na forma de um estranho, de um peregrino, de um dos mais pequeninos.
Gostei muito pastor. Palavras inspiradas.
Muito boa reflexão!!
Aliás; como sempre.
Abçs