Igreja, culto e missão
Considerações eclesiológicas e missiológicas sobre a liturgia cristã
Igreja não é culto
Ao que parece, o senso comum confunde, amiúde, igreja com culto. Tanto é assim que parece cada vez mais difícil imaginarmos a existência da Igreja se dela retirarmos a liturgia. Seria possível a Igreja existir sem cultos? Parece evidente que este se trata de um dos seus componentes essenciais… mas nunca foi, e nunca será o único. Da mesma forma que dificilmente a Igreja subsistiria sem culto, ela não poderia subsistir sem outros elementos igualmente importantes.
Paradigmático, nesse sentido, é a narrativa lucana da Igreja Primitiva, no qual a liturgia é apresentada como um dos elementos eclesiológico-missionlógicos essenciais. Assim, no relato dos Atos dos Apóstolos (particularmente no capítulo 2, versos 42 e seguintes) a liturgia aparece como elemento de fecho de uma lista que compreende:
Primeiramente, a Doutrina (didalkalia). Por doutrina entenda-se não uma compilação sistemático-dogmática da religião, mas muito mais a coleção didático-pedagógica de preceitos, princípios e instruções, partilhados pelos apóstolos e líderes dessa eclesiogênese. As complexas e abstratas formulações dogmático-teóricas foram um produto tardio de uma realidade que começou profundamente comunitária no contexto de uma práxis eminentemente vivencial e encarnacional. Um segundo elemento elencado é a comunhão (koinonia), em terceiro vem o partir do pão (diakonia), e, finalmente, as orações (liturgia).
Reduzir a experiência eclesiológica ao culto resultaria num empobrecimento tamanho que desqualificaria a Igreja como tal.
Missão não é trazer as pessoas para o culto
Considere-se o comissionamento dado por Jesus (Mt 28): “indo, fazei discípulos de todas as nações, ensinando-os.” Não se trata de uma dinâmica ad intra, mas ad extra. A missão pressupõe abertura, ensino e inclusão.
Trata-se de um equívoco estratégico, cada vez mais frequente, as práticas evangelísticas e missionárias que insistem em atrair o público para os cultos, para então evangelizá-lo. Isso desvia o foco da Igreja, que sendo agência do Reino de Deus, transforma-se em agência de marketing e de merchandise.
A missão não acontece no culto, mas no seu interregno. É entre um culto e outro, que a igreja evangeliza e cumpre sua missão.
A palavra “missa”, seria bom lembrar neste estágio da reflexão, deriva do latim, missio, assim como “missão”. A liturgia medieval da missa conformava duas partes essenciais: A primeira era chamada de liturgia dos catecúmenos. Como indica a consigna, dela podiam participar os batizados e os não batizados. Nela eram feitas, principalmente, as leituras bíblicas e a pregação, que as explicava. Tratava-se, pelo menos em tese, de uma parte do culto destinada à edificação e instrução do povo, especialmente dos que, já tendo sido evangelizados, se preparavam para receber o batismo.
Então, vinha a segunda e mais importante parte da missa, chamada de liturgia dos fiéis. Desta, somente os batizados tomavam parte, e incluía a ministração do sacramento eucarístico. Houve épocas e ocasiões em que os não batizados eram obrigados a se retirarem do templo. Conquanto houvesse, na primeira parte da missa, uma atenção para com os não batizados, é notório que o momento mais significativo do culto, o sacramento da Santa Comunhão, era restrito aos batizados. Daí, podemos supor que o culto é, essencial e primeiramente, um acontecimento protagonizado pelos fiéis e não uma instância estabelecida para converter os incrédulos.
No entanto, o culto também é missa, missio, missão. Mas como?
O culto é a fonte e o ápice da missão
O relato de Atos 3 exemplifica claramente o que estamos tentando mostrar: Pedro e João (que representam a Igreja) iam ao Templo para a oração (que é o culto); mas, no caminho (no interregno), encontram-se com o homem coxo (que representa o mundo carente do Evangelho). Nesse contexto, a Igreja interrompe sua caminhada rumo à liturgia para uma ação missionária sensorial e concreta (note-se o destaque dado para a visão, a audição e o tato, na narrativa – podemos ainda inferir o olfato…). Quando, filnalmente a Igreja e o Mundo se dão as mãos e passam a caminhar juntos, aí sim chega a vez do culto: entraram no Templo saltando e louvando a Deus (v. 10).
O Culto é, portanto a fonte e o ápice da missão (culmen et fons, diriam os teólogos clássicos) . O culto aguça os sentidos do Corpo de Cristo para a missão; dá-lhe olhos e ouvidos atentos; olfato e paladar sensíveis; e tato para o trato amoroso e misericordioso para interagir com aqueles e aquelas a quem a Igreja haverá de encontrar no caminho.
Luiz Carlos Ramos
Não vejo esse texto de Atos 3 como justificando o culto como a fonte e o ápice da missão. Admitir isso de certa forma subordina o culto a missão e não é isso que o texto de Atos 3 quer dizer.
Na verdade, a ação missionária, pelo menos neste caso, só ocorreu porque Pedro e João iam ao Templo prestar culto a Deus. Se não fosse o culto e o fato do coxo estar na porta do templo, a missão não teria ocorrido. Assim, a cura do coxo, vista como missão, só ocorreu como um fato acidental de eles estarem se dirigindo ao culto.
Proponho aqui uma inversão do papel da missão e do culto. A cura efetuada mostra uma ação missionária necessária para que o próprio culto seja agradável a Deus, pois pode ser visto como relacionado a um ensinamento de Jesus em Mt 5:23-24. Nesta perspectiva, como poderia Pedro e João irem ao culto sem nada poderem fazer pelo coxo que lhe pediu ajuda? Uma resposta indiferente de Pedro e João àquela demanda do coxo seria muito equivalente a oferecer uma oferta no altar sem antes se reconciliar com o irmão.
Amei!!! É como beber água na fonte.
Olá Prof. Luiz Carlos,
foi justamente este o tema do meu trabalho de conclusão de curso onde discuti o culto em termos de missão e fui apresentando a dimensão missionária de cada elemento do culto, bem como em outros ritos. Preciso rever meu texto, após a leitura do teu texto. Sua reflexão é muito pertinente! Obrigado pela contribuição. Parabéns.
Um abraço
Ezequiel H.
Caro Ezequiel,
Obrigado por seu comentário. Se puder, compartilhe conosco sua pesquisa.
Abraço,
Luiz
Prof. Luiz Carlos, bom dia.
Sou seu aluno na graduação EAD na Metodista, e também líder de uma comunidade batista.
Muito oportuna a sua reflexão. Algo para se pensar e abrir os horizontes da reflexão. Gostei da metáfora em Atos 3. “O culto é a fonte e o ápice da missão”.
Apesar de não focar na temática da liturgia, há um livro muito bom sobre o assunto, chamado Alegrem-se os povos, de John Piper. Lá, ele defende que a adoração é o combustível e o alvo de missões. Um pensamento semelhante.
Abraços,
Davi.
O interssante e que o culto nao se tornou somente a parte mais importante da igreja. Para muitas igrejas o culto se tornou a unica atividade. Durante muito tempo a igreja catolica insistiu que as obrigacoes de seus fieis eram a missa dominical e a confissao e comunhao anual. Alem dessa “priorizacao” da liturgia, sequer havia a preocupacao com o seu significado, bastando a presenca como condicao suficiente. No entnato essa nao e a pregacao crista:” eu vim para que tivesses vida e vida em abundancia”.
Acho que essa identificacao da igreja com o culto, tem muito que ver com a institucionalizacao do cristianismo atraves das suas igrejas que, historicamente sempre estiveram mais preocupadas em sua preservacao enquanto instituicao que com os valores cristaos que lhe deram origem. A instituicao ficou mais importante que os valores que devia proclamar. Jesus veio trazer a libertacao e ganhou um monte de igrejas que falam em seu nome. Mas isso e outra conversa. Quem quiser entender melhor sugiro a Parabola do Grande Inquisidor do Dostoievski. Abracos Luis e parabens pela reflexao
Francisco Carbonari