Múnus pastoral
* * *
A homilética cristã, como o é toda a Teologia Pastoral, é historicamente herdeira da tríplice hierarquia ministerial judaica: rei—sacerdote—profeta.
Sacerdotes desenvolveram uma homilética da celebração do cotidiano
Nas Escrituras, a pregação do do sacerdote atua, em geral, como recapitulação da memória fundante de Israel e convocação à prática dos preceitos dados por Deus e registrados nos escritos sagrados — Torá (Lei), dos Nebiim (Profetas) e dos Ketubim (Escritos).
Reis-pregadores exerciam uma homilética da sabedoria familiar
Ainda na Bíblia Hebraica, constata-se a responsabilidade homilética de chefes de família, de clãs e de reis. É interessante notar que o mapeamento da sabedoria semita, principalmente de Israel, mostra o trabalho dos sábios que coletam as memórias (e demais produções sapienciais, tais como ditos, sentenças e provérbios) das bases populares, submete-as à interpretação das escolas sapienciais, organizando por fim coletâneas e antologias. A obra se torna o espelho da consciência do povo. Mais adiante, a monarquia será a principal colecionadora destas antologias, que estarão a serviço de seus discursos. Mas o papel de pregador não se restringe aos reis. Também era responsabilidade dos “anciãos de Israel”, isto é, dos chefes de família, explicar para os seus familiares e agregados o sentido das festas e das cerimônias religiosas que, como povo, celebravam anualmente. Por essa prática homilética — no sentido de discurso em tom familiar a partir dos “textos” sagrados e no contexto litúrgico — as tradições e a cultura religiosa eram transmitidas de geração a geração.
Profetas praticavam uma homilética da contestação e da esperança
A homilética profética judaica se manifestava de duas maneiras: no anúnciodas promessas divinas e nas denúncias de eventuais desvirtuamentos em relação à vontade de Deus. Deve-se acrescentar, a respeito dos profetas, que sua pregação não se restringia ao discurso oral. Muito de sua pregação se efetivava por meio de atos simbólicos, do gestual, do vestuário (ou ausência dele) e do seu próprio estilo de vida. Conforme salientou Louis Monloubou, os profetas se comunicavam verbalmente (alguns chegavam a gritar, cf. Is 40.6), alguns poucos escreviam suas mensagens, mas, “falado ou escrito, o seu discurso, feito de palavras e de frases, se desdobrava em outra linguagem, a dos sinais, dos gestos”. Portanto “a palavra dos profetas era também ‘gestual’; as suas proclamações oratórias eram pontilhadas de atos significativos”:[1] rasgando mantos (1Rs 11.30-32), brandindo chifres de ferro (1Rs 20.35-43), casando com prostitutas (Oséias), dando nomes-mensagens aos filhos (Is 7.3; 8.3; 7.14; 8.3s), andando nus e descalços (Is 20), lavando cintos no Eufrates (Jr 13.1-11), quebrando jarros (Is 19), carregando cangas no pescoço (Jr 27), trancando-se em casa, mudos e atados (Ez 3.24-64), cortando fios da barba e do cabelo (Ez 5.1-3), comendo alimento de miséria (Ez 12.17-20), para citarmos uns poucos exemplos.
Da profecia bíblica, a práxis homilética herdou a solidariedade para com o povo oprimido e o engajamento no serviço de uma Palavra que transcende o discurso verbal, chegando mesmo a expressar-se espetacularmente por meio de atos simbólicos significativos, com vistas à transformação da realidade.
Luiz Carlos Ramos
[1] MONLUBOU, 1986, p. 36.
[2] Cf. KERR, 1938, p. 34-38.
[3] Sobre o tema dos “logia” de Jesus, há um texto que pode ajudar oferecendo outras leituras, a saber, CERFAUX, Lucien. Jesus nas origens da tradição. São Paulo: Ed. Paulinas, 1972. p. 55 ss.
[4] Cf. PATTISON, 1903, p. 22
[5] Cf. GARVIE, 1959, p. 29.
[6] Cf. GARVIE, 1959, p. 31-33.
[7] Cf. PATTISON, 1903, p. 35-37.
[8] Cf. PATTISON, 1903, p. 48.