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T e x t o s & T e x t u r a s

Pai, Pão e Perdão

Mt 6.9-13: Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; 10venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; 11o pão nosso de cada dia dá-nos hoje; 12e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores; 13e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal [pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém]! [ERAB]

Desde pequeno eu ouvia as pessoas se referirem à Oração do Pai Nosso como sendo a Oração Dominical. Eu pensava que era chamada assim por ser aquela oração que fazíamos todos os domingos no encerramento da Escola Dominical. Mais tarde, eu descobri que a palavra Dominical se refere a Senhor (do lat. Dominus). Entendi, também, que ela ganhara esse apelido, Oração Dominical, justamente por ter sido a oração com a qual Jesus ensinou seus discípulos a orar. 

Desde o princípio da história da Igreja Cristã, muitos teólogos se preocuparam com a oração de um modo geral, e com esta, em particular. Santo Agostinho, Lutero, Calvino, e muitos outros, escreveram sobre ela. Com João Wesley não foi diferente. Ele escreveu seis prédicas sobre o Sermão do Monte. E tanto no Sermão do Monte de Jesus, como no monte de sermões de Wesley, a Oração do Pai Nosso se destaca. 

Esse interesse não ficou restrito aos teólogos do passado: Karl Barth, por exemplo, escreveu um livro intitulado “A Oração”, no qual analisa, particularmente, as petições da oração do Pai Nosso. Joachim Jeremias, Rubem Alves e Leonardo Boff, também escreveram livros inteiros sobre o Pai Nosso

Teólogos, pensadores, religiosos, bispos, crentes, fiéis, enfim, todos procuram descobrir na Oração do Pai Nosso os princípios gerais, aquilo que se considera essencial, para a vida devocional do/a cristão/ã e da Igreja. Podemos nos perguntar: por que tanta preocupação com esta oração? 

Ora, a oração não se reduz ao ato no qual fechamos os olhos e elevamos o “pensamento” a Deus. A oração é, na verdade, a expressão de toda a vida devocional da pessoa que crê. Tanto é assim, que a palavra oração se confunde, na história da Igreja, com a própria liturgia. Culto, liturgia e oração são, em certos momentos, sinônimos. Quando Wesley redige as suas orientações litúrgicas para o povo metodista, denomina-o Livro de Oração. Nele, o Culto da Manhã e o Culto da Noite são chamados, respectivamente, de Oração da Manhã eOração da Noite (ou Oração Vespertina). 

A despeito de tanta instrução, a gente nunca acha que sabe orar/adorar como convém. Quando no Sermão do Monte, depois das considerações de Jesus sobre o jeito correto de orar, e sobre o lugar adequado para se fazer as orações, os discípulos não se consideraram satisfeitos, e por isso suplicaram: “Mestre ensina-nos a orar”.

Querer aprender a orar já é um bom começo. Então Jesus oferece um modelo que, obviamente, não pretendia ser o único padrão de oração, nem deveria ser considerada uma fórmula mágica, ou uma série de palavras para serem recitadas como abracadabras – como se tivessem poder em si mesmas. Não! Esta oração é muito mais uma reflexão teológica sobre a atitude do/a crente diante do Pai que está no céu. Não um sortilégio ou um encantamento.

Certa vez, numa entrevista, o Frei Leonardo Boff dizia: “Essa não é só a oração do Pai Nosso, ela é também a oração do Pão Nosso”. De fato, esta é a oração do Pai e é a oração do Pão, entretanto, eu gostaria de incluir um terceiro “P” nesta reflexão – além do Pai Nosso e do Pão Nosso, esta oração também nos fala do Perdão Nosso

O Pai Nosso

A oração começa com a expressão “Pai nosso que estás nos céus”. Ora, o fato de Jesus se dirigir a Deus como Pai já é de certa forma bastante revolucionária – ao menos pela ousadia em empregar esse termo de intimidade. Trata-se de um pai diferente dos demais: muito parecido com o da parábola do Filho Pródigo, que é, a rigor, mais mãe do que pai. Quando nos referimos a Deus como pai, pode ser que nos venha à mente a imagem do nosso pai terreno, com todas as suas falhas, com todos os seus defeitos. Por essa razão Jesus se reporta ao Pai que está no céu, que é pleno de ternura.

E esse pai é nosso. Tanto Karl Barth quanto João Wesley falam que o pronome, nosso, é determinante: que essa oração só pode ser pronunciada se nela houver um Pai e se houver um Nosso. O nosso aparece muitas vezes na Oração do Senhor – Wesley tem a paciência de contar, e nos informa que o referencial nós ou nos aparece sete vezes em apenas três versículos. A oração é, portanto, enfaticamente comunitária. Uma oração que pensa a coletividade. O Pai não é somente meu, mas é nosso. Portanto, não chego diante de Deus somente com os meus próprios sentimentos, somente com a minha fé individual e privada, mas oro conjuntamente com toda a comunidade de fé. Segundo Karl Barth, toda humanidade está presente na Oração do Pai Nosso. Ainda que os ateus, ou que se dizem ateus, suponham viver sem Deus, na concepção cristã não é possível haver um Deus sem o ser humano. Portanto, até mesmo aqueles que não crêem, aquelas que não têm Deus, estão representados na Oração do Pai Nosso

Na primeira parte dessa oração, podemos perceber três pequenas subdivisões, referentes ao nome de Deus, ao reino de Deus e à vontade de Deus:

A primeira suplica: Santificado seja o teu nome. “Santificar” significa separar, tratar de maneira distinta. Vemos aqui um profundo sentimento de reverência. Não é possível estarmos na presença de Deus sem a compreensão de que Ele é Javé, ele é aquele de quem nós não somos dignos de pronunciar o nome – seu Nome não deve ser tomado em vão, mas antes santificado e tratado com distinção. 

A segunda suplica: Venha o teu Reino. Além de reverência, a oração pressupõe fé, expectativa do futuro, expectativa do reino que há de vir. Essa fé é fundamental, pois quando oramos, “venha o teu reino”, nós cremos que alguma coisa há de acontecer num futuro próximo.

Deus é o Pai que está no céu, e para Jesus o céu é muito mais que uma categoria atmosférica ou astronômica – é uma categoria teológica: o céu é o lugar onde a vontade de Deus é feita. Sim, Deus é o Pai que está no céu, mas a intenção não é que Ele fique confinado lá.

Por isso a terceira súplica: seja feita a tua vontade assim na terra como ela é feita no céu. Temos aqui duas instâncias: o céu e a terra – e a síntese dessas duas categorias é justamente o Reino de Deus. O Reino de Deus é onde o céu e a terra se juntam para fazer a vontade de Deus.

À continuação, seguem-se outras súplicas que têm a ver com uma outra dimensão na oração – a primeira, a dimensão do Pai, é uma dimensão vertical, espiritual; esta outra é uma dimensão material, concreta e pessoal: “O Pão nosso de cada dia nos dá hoje”.

O Pão Nosso

Vários, dentre os teólogos aqui citados, teceram suas considerações sobre o que viria a ser esse pão. Para Lutero, o pãoé o alimento, é a bebida, é a veste, é o calçado, a casa, as granjas, os campos, os animais, o dinheiro, o/a esposa/o piedoso/a, filhos piedosos, criados, bons empregados, tempo bom (nem demasiado frio nem demasiado calor), paz, saúde, disciplina, honra, bons amigos, vizinhos fiéis – tudo isso cabe na categoria pão para Lutero. 

Os peregrinos, os andarilhos, quando batem de casa em casa, em busca de suprimento para as suas necessidades, a primeira coisa que pedem é pão, porque essa é a célula fundamental para a sobrevivência. Karl Barth considera como sendo o pão tanto a dimensão material, como a espiritual. Outros chegam a afirmar que esse também é o pão da eucaristia, o pão sacramental. Wesley concorda com essa interpretação amplificada:

“Agora não nos esqueçamos também desse conceito básico, que é o pão cotidiano, que é esse elemento essencial, fundamental, sem o qual nós não podemos preservar a vida”.

E:

“Se o pão a que Jesus se refere for só esse pãozinho do dia a dia já seria grande coisa, já seria muita coisa, mas é na verdade muito mais do que isso. Quando oramos por esse pão nós estamos lembrando de toda concretude, de toda a materialidade, de toda solidariedade com a qual Deus nos presenteou”.

A oração diz, ainda: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Ora, o pão pelo qual Jesus suplica é o nosso, ou seja, não é o pão dos outros: não tenho o direito de querer para mim aquele pão que não é o meu. Em outras palavras, o que estamos a dizer é: Senhor, eu quero ter direito àquele pãoque é destinado a mim. Eu não preciso tomar o pão dos outros, eu não quero me saciar com a fome dos outros, eu não pretendo encher a minha despensa às custas da falta de alimento na despensa do meu vizinho.

A expressão: a cada dia, ou de cada dia, é muito controvertida, porque a tradução do grego, em si, é complicada. A tradução literal seria mais ou menos esta: O pão de amanhã nos dá hoje; ou do dia seguinte; ou o pão para amanhã; ou ainda que o pão que a gente precisa para sobreviver um dia de cada vez, nos venha hoje. Então esta experiência de querer, dia a dia, o pão que é nosso, de não querer aquilo que não nos pertence – sem a necessidade de acúmulo, sem o abuso da poupança, sem o abuso de querer juntar mais do que se pode gastar – nisto está o senso de justiça. Tal qual a letra da canção popular: “Não quero o luxo nem lixo…” Eis uma lição que estamos precisando reaprender, porque muitos de nós continuamos a acumular luxo, enquanto tantos continuamos a vasculhar o lixo. 

A oração de Jesus pede que o pão seja para todos/as, e que nós saibamos como usá-lo de maneira sábia, com justiça, sem acúmulo, sem a ganância consumista, sem a angustiante ansiedade pelo dia de amanhã.

O Perdão nosso

Depois de pensar na dimensão espiritual da Oração do Pai Nosso e na sua dimensão material, agora podemos pensar a sua dimensão social, comunitária, relacional, interpessoal, evidenciada pela súplica por perdãoPerdoa-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos os nossos devedores.

Conversando com o Prof. Paulo Garcia, catedrático em NT, ouvi-o dizer:

“A próxima vez que eu pregar sobre essa oração vou começar dizendo: Meus irmãos e irmãs, ainda bem que Deus não ouve as nossas orações. Porque já pensaram se Deus, realmente nos tratasse como nós tratamos o nosso próximo? Se Ele levasse a sério a petição: perdoa as nossas dívidas, como nós perdoamos os nossos devedores?” 

Aqueles/as dentre nós que estão com o saldo bancário negativo, ou com dificuldade para zerar o cartão de crédito, sim, talvez possamos encontrar algum alento nessas palavras de Jesus. As pessoas, as instituições, privadas e públicas, têm contraído muitas dívidas – nota-se a face macro do problema na triste realidade da dívida externa dos países do Terceiro Mundo. Somos todos devedores e devedoras, material e religiosamente falando. Na verdade, já deveríamos estar no SPC do céu. Mas Deus, na sua bondade, na sua misericórdia, tem nos dado, todo dia, sempre de novo, a chance de renovarmos o nosso crédito com Ele.

E quando oramos: perdoa as nossas dívidas, nós reconhecemos, primeiramente, que todos nós temos dívidas, que todos somos devedores. Em segundo lugar, que todos nós temos alguém que nos deve alguma coisa. E, em terceiro lugar, quando suplicamos: “não nos deixe (ounão nos induza a) cair em tentação, mas livra-nos do mal” – reconhecemos que estamos constantemente correndo o risco de ceder à tentação de contrair novas dívidas ou de querer punir aos nossos devedores.

Não há justo, sequer um, diz a Palavra de Deus. Por isso, por exemplo, nós que somos mais velhos devemos ter muita paciência com os mais jovens. Não porque sejamos mais santos do que eles, mas porque temos mais pecados do que eles. Sim! Pelo fato de sermos mais velhos, termos vivido mais tempo, então, nós temos mais pecados acumulados do que eles – algo do tipo “saldo por tempo de serviço”. Por essa razão, devemos ser compreensivos, tolerantes e pacientes para com os mais jovens, e perdoá-los – porque já passamos pelo que eles estão passando. Todos nós temos as nossas dívidas, e todos nós temos os nossos devedores. Todos, inclusive você e eu, precisamos perdoar e sermos perdoados.

Conclusão

Oração do Pai Nosso nos ensina a respeito de pelo menos três dimensões que devem ser levadas a sério na nossa vida devocional: em primeiro lugar, a dimensão espiritual, que tem a ver com o reconhecimento da soberania de Deus – o Pai Nosso; em segundo lugar, a dimensão material e pessoal, com a qual Deus nos assiste, com a qual Deus nos sustenta – o Pão Nosso. E, em terceiro lugar, a dimensão social e comunitária, com a qual nós devemos aprender a lidar com o nosso próximo – especialmente no que se refere às questões econômicas – pois todos nós precisamos da graça de Deus e do favor do próximo – o Perdão Nosso.

Por essas razões, devemos sempre nos curvar diante de Deus em atitude de profunda humildade, sabendo que Ele é o Pai que está nos céus; e que a vontade que deve ser feita é a dele; e que, se ele quiser, nós, você e eu, poderemos ser abençoados por isso.  

Aprendamos, pois, a orar diante do Pai, aprendamos a pedir pelo Pão, e aprendamos a Perdoar aos nossos irmãos e irmãs, para podermos alcançar o Eterno. Façamos sempre, e de todos os modos, a Oração do Pai, do Pão e do Perdão.

Afinal, 

orar é mais do que falar; 
orar é mais do que calar; 
orar é estar constantemente na presença do Eterno, 
para podermos viver intensamente o efêmero.

Assim seja!

Rev.  Luiz Carlos Ramos

Imagem:
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